26 janeiro, 2007

Tempestade de almas


Ah, se eu sei, não nascia, ah, se eu sei, não nascia.
A loucura é vizinha da mais cruel sensatez.
Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente.
O anel que tu me deste era de vidro e se quebrou e o amor não acabou, mas em lugar de, o ódio dos que amam.
A cadeira me é um objeto.
Inútil enquanto a olho.
Diga-me por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta hora.
A criatividade é desencadeada por um germe e eu não tenho hoje esse germe mas tenho incipiente a loucura que em si mesma é criação válida.
Nada mais tenho a ver com a validez das coisas.
Estou liberta ou perdida.
Vou-lhes contar um segredo: a vida é mortal.
Nós mantemos esse segredo em mutismo cada um diante de si mesmo porque convém, senão seria tornar cada instante mortal.
O objeto cadeira sempre me interessou.
Olho esta que é antiga, comprada num antiquário, e estilo império; não se poderia imaginar maior simplicidade de linhas, contrastando com o assento de feltro vermelho.
Amo os objetos à medida que eles não me amam.
Mas se não compreendo o que escrevo a culpa não é minha.
Tenho que falar pois falar salva.
Mas não tenho uma só palavra a dizer.
As palavras já ditas me amordaçaram a boca.
O que é que uma pessoa diz à outra? Fora "como vai?"
Se desse a loucura da franqueza, que diriam as pessoas às outras?
E o pior é o que se diria uma pessoa a si mesma, mas seria a salvação, embora a franqueza seja determinada no nível consciente e o terror da franqueza vem da parte que tem no vastíssimo inconsciente que me liga ao mundo e à criador inconsciência do mundo.
Hoje é dia de muita estrela no céu, pelo menos assim promete esta tarde triste que uma palavra humana salvaria.
Abro bem os olhos, e não adianta: apenas vejo.
Mas o segredo, este não vejo nem sinto.
A eletrola está quebrada e não viver com música é trair a condição humana que é cercada de música.
Aliás, música é uma abstração do pensamento, falo de Bach, de Vivaldi, de Haendel.
Só posso escrever se estiver livre, e livre de censura, senão sucumbo.
Olho a cadeira estilo império e dessa vez foi como se ela também me tivesse olhado e visto.
O futuro é meu enquanto eu viver.
No futuro vai ter mais tempo de viver, e, de cambulhada escrever.
No futuro, se diz: se eu sei, eu não nascia.
Marli de Oliveira, eu não escrevo cartas pra você porque só sei ser íntima.
Aliás eu só sei em todas as circunstâncias ser íntima: por isso sou mais uma calada.
Tudo o que nunca se fez, far-se-á um dia?
O futuro da tecnologia ameaça destruir tudo o que é humano no homem, mas a tecnologia não atinge a loucura; e nela então o humano do homem se refugia.
Vejo as flores na jarra: são flores do campo, nascidas sem se plantar, são lindas e amarelas.
Mas minha cozinheira disse: mas que flores feias. S
ó porque é difícil compreender e amar o que é espontâneo e franciscano.
Entender o difícil não é vantagem, mas amar o que é fácil de se amar é uma grande subida na escala humana.
Quantas mentiras sou obrigada a dar.
Mas comigo mesma é que eu queria não ser obrigada a mentir.
Senão, o que me resta?
A verdade é o resíduo final de todas as coisas, e no meu inconsciente está a verdade que é a mesma do mundo.
A Lua é, como diria Paul Éluard, éclatante de silence.
Hoje não sei se vamos ter Lua visível pois já se torna tarde e não a vejo no céu.
Uma vez eu olhei de noite para o céu circunscrevendo-o com a cabeça deitada para trás, e fiquei tonta de tantas estrelas que se vêem no campo, pois, o céu do campo é limpo.
Não há lógica, se se for pensar um pouco, na ilogicidade perfeitamente equilibrada da natureza. Da natureza humana também.
O que seria do mundo, do cosmos, se o homem não existisse.
Se eu pudesse escrever sempre assim como estou escrevendo agora eu estaria em plena tempestade de cérebro que significa brainstorm.
Quem terá inventado a cadeira?
Alguém com amor por si mesmo.
Inventou então um maior conforto para o seu corpo.
Depois os séculos se seguiram e nunca mais ninguém prestou realmente atenção a uma cadeira, pois usá-la é apenas automático.
É preciso ter coragem para fazer um brainstorm: nunca se sabe o que pode vir a nos assustar.
O monstro sagrado morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha.
Bem sei que terei de parar, não por causa de falta de palavras, mas porque essas coisas, e sobretudo as que eu só pensei e não escrevi, não se usam publicar em jornais.

Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994

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