06 janeiro, 2007

Como tratar o que se tem


Existe um ser que mora em mim como se fosse casa sua, e é.
Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem - pois nunca morou em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela - apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo:
come às vezes na minha mão.
Seu focinho é úmido e fresco.
Eu beijo o seu focinho.
Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito.
A menos que ele escolha outra casa que não tenha medo do que é ao mesmo tempo selvagem e suave.
Aviso que ele não tem nome:
basta chamá-lo e se acerta com seu nome.
Ou não se acerta, mas uma vez chamado com doçura e autoridade ele vai.
Se ele fareja e sente que um corpo é livre, ele trota sem ruídos e vai.
Aviso também que não se deve temer o seu relinchar:
a gente se engana e pensa que é a gente mesmo que está relinchando de prazer ou de cólera.
Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

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