31 janeiro, 2007



αίŋđα ŋãσ ѕєί ασ cєrтσ qυєм ѕσυ,
ρrσcυrσ мє đєƒίŋίr,
ŋσѕ мєυѕ cσŋcєίтσѕ,
ŋαѕ мίŋђαѕ αтίтυđєѕ,
ŋσ qυє єυ ρєŋѕσ є ŋσ qυє єυ ƒαçσ!!!
єυ ѕσυ ƒєίтα đє ѕσŋђσѕ ίŋтєrrσмρίđσѕ,
đєтαlђєѕ đєѕρєrcєвίđσѕ,
αмσrєѕ мαl rєѕσlνίđσѕ.
ѕσυ ƒєίтα đє cђσrσѕ ѕєм тєr rαzã,
ρєѕѕσαѕ ŋσ cσrαçãσ,
αтσѕ ρσr ίмρυlѕãσ.
ѕίŋтσ ƒαlтα đє lυgαrєѕ qυє ŋãσ cσŋђєcί,
єxρєrίêŋcίαѕ qυє ŋãσ νίνί,
мσмєŋтσѕ qυє נá єѕqυєcί.
єυ ѕσυ αмσr є cαrίŋђσ,
cσŋѕтαŋтє đίѕтrαíđα αтé σ вαѕтαŋтє,
ŋãσ ραrσ ρσr ίŋѕтαŋтє.
мυίтαѕ νєzєѕ єυ đєѕίѕтί,
ѕєм мєѕмσ тєŋтαr,
ρєŋѕєί єм ƒυgίr ραrα ŋãσ єŋƒrєŋтαr,
ѕσrrί ραrα ŋãσ cђσrαr.
єυ ѕίŋтσ ρєlαѕ cσίѕαѕ qυє ŋãσ мυđєί,
αмίzαđєѕ qυє ŋãσ cυlтίνєί,
αqυєlєѕ qυє єυ נυlgυєί,
cσίѕαѕ qυє єυ ƒαlєί,
тєŋђσ ѕαυđαđє đє ρєѕѕσαѕ qυє ƒυί cσŋђєcєŋđσ,
lємвrαŋçαѕ qυє ƒυί єѕqυєcєŋđσ,
αмίgσѕ qυє αcαвєί ρєrđєŋđσ,
мαѕ cσŋтίŋυσ νίνєŋđσ є αρrєŋđєŋđσ...
(Autor: Desconhecido)

30 janeiro, 2007

Se eu fosse sóbria e séria...



Se eu fosse sóbria e séria, se sensata,
Dos cultos a verdade aceitaria,
Um bom pastor, e Deus pra ser meu guia,
Se eu fosse sábia, sim,
Eu buscaria.
Se eu fosse sóbria e séria, se sensata,
Casada e gorda, comportada e fria,
Um mundo bom, o amor de uma família,
Se eu fosse séria, sim,
Eu já teria.
Mas a paixão não quer a sobriedade
Nem seriedade sabe o coração
E quem busca o calor da divindade
Não se consola com religião.
E não sou sóbria e séria e nem sensata,
Eu meço a hipocrisia dos contentes
E ao justo criador nada mais peço
Que a luz do Sol pra me afiar os dentes.
(Patrícia Clemente)*

29 janeiro, 2007

Metade - Oswaldo Montenegro


Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo que acredito não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu grito,
mas a outra metade é silêncio.
Que a música que eu ouço ao longe seja linda, ainda que triste.
Que a mulher que eu amo seja sempre amada, mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida e a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimento.
Porque metade de mim é o que eu ouço, mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço.
Que essa tensão que me corroe por dentro seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu penso e a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste,
que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto o doce sorriso que eu me lembro de ter dado na infância.
Porque metade de mim é a lembrança do que fui, a outra metade eu não sei...
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio me fale cada vez mais.
Porque metade de mim é abrigo, mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba.
E que ninguém a tente complicar porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer.
Porque metade de mim é a platéia e a outra metade, a canção.
E que minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é amor e a outra metade... também.
Autor: Oswaldo Montenegro

28 janeiro, 2007

Conto de Fadas para Mulheres do Século 21


Era uma vez, numa terra muito distante,
uma linda princesa, independente e cheia de auto-estima que,
enquanto contemplava a natureza e pensava em como
o maravilhoso lago do seu castelo estava de acordo
com as conformidades ecológicas, se deparou com uma rã.
Então, a rã pulou para o seu colo e disse:
- Linda princesa, eu já fui um príncipe muito bonito.
Mas, uma bruxa má lançou-me um encanto e eu transformei-me nesta rã asquerosa.
Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo príncipe e poderemos casar e constituir lar feliz no teu lindo castelo.
A minha mãe poderia vir morar conosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavaria as minhas roupas, criarias os nossos filhos e viveríamos felizes para sempre....
E então, naquela noite,
enquanto saboreava pernas de rã a sautée,
acompanhadas de um cremoso molho acebolado e
de um finíssimo vinho branco,
a princesa sorria e pensava:
"Nem fudendo!".
(Luís Fernando Veríssimo).

27 janeiro, 2007

Trabalho humano



Talvez esse tenha sido o meu maior esforço de vida:
para compreender minha não inteligência
fui obrigada a tornar-me inteligente.
(Usa-se a inteligência para entender a não inteligência.
Só que depois o instrumento continua a ser usado
- e não podemos colher as coisas de mãos limpas.)
Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

26 janeiro, 2007

Tempestade de almas


Ah, se eu sei, não nascia, ah, se eu sei, não nascia.
A loucura é vizinha da mais cruel sensatez.
Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente.
O anel que tu me deste era de vidro e se quebrou e o amor não acabou, mas em lugar de, o ódio dos que amam.
A cadeira me é um objeto.
Inútil enquanto a olho.
Diga-me por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta hora.
A criatividade é desencadeada por um germe e eu não tenho hoje esse germe mas tenho incipiente a loucura que em si mesma é criação válida.
Nada mais tenho a ver com a validez das coisas.
Estou liberta ou perdida.
Vou-lhes contar um segredo: a vida é mortal.
Nós mantemos esse segredo em mutismo cada um diante de si mesmo porque convém, senão seria tornar cada instante mortal.
O objeto cadeira sempre me interessou.
Olho esta que é antiga, comprada num antiquário, e estilo império; não se poderia imaginar maior simplicidade de linhas, contrastando com o assento de feltro vermelho.
Amo os objetos à medida que eles não me amam.
Mas se não compreendo o que escrevo a culpa não é minha.
Tenho que falar pois falar salva.
Mas não tenho uma só palavra a dizer.
As palavras já ditas me amordaçaram a boca.
O que é que uma pessoa diz à outra? Fora "como vai?"
Se desse a loucura da franqueza, que diriam as pessoas às outras?
E o pior é o que se diria uma pessoa a si mesma, mas seria a salvação, embora a franqueza seja determinada no nível consciente e o terror da franqueza vem da parte que tem no vastíssimo inconsciente que me liga ao mundo e à criador inconsciência do mundo.
Hoje é dia de muita estrela no céu, pelo menos assim promete esta tarde triste que uma palavra humana salvaria.
Abro bem os olhos, e não adianta: apenas vejo.
Mas o segredo, este não vejo nem sinto.
A eletrola está quebrada e não viver com música é trair a condição humana que é cercada de música.
Aliás, música é uma abstração do pensamento, falo de Bach, de Vivaldi, de Haendel.
Só posso escrever se estiver livre, e livre de censura, senão sucumbo.
Olho a cadeira estilo império e dessa vez foi como se ela também me tivesse olhado e visto.
O futuro é meu enquanto eu viver.
No futuro vai ter mais tempo de viver, e, de cambulhada escrever.
No futuro, se diz: se eu sei, eu não nascia.
Marli de Oliveira, eu não escrevo cartas pra você porque só sei ser íntima.
Aliás eu só sei em todas as circunstâncias ser íntima: por isso sou mais uma calada.
Tudo o que nunca se fez, far-se-á um dia?
O futuro da tecnologia ameaça destruir tudo o que é humano no homem, mas a tecnologia não atinge a loucura; e nela então o humano do homem se refugia.
Vejo as flores na jarra: são flores do campo, nascidas sem se plantar, são lindas e amarelas.
Mas minha cozinheira disse: mas que flores feias. S
ó porque é difícil compreender e amar o que é espontâneo e franciscano.
Entender o difícil não é vantagem, mas amar o que é fácil de se amar é uma grande subida na escala humana.
Quantas mentiras sou obrigada a dar.
Mas comigo mesma é que eu queria não ser obrigada a mentir.
Senão, o que me resta?
A verdade é o resíduo final de todas as coisas, e no meu inconsciente está a verdade que é a mesma do mundo.
A Lua é, como diria Paul Éluard, éclatante de silence.
Hoje não sei se vamos ter Lua visível pois já se torna tarde e não a vejo no céu.
Uma vez eu olhei de noite para o céu circunscrevendo-o com a cabeça deitada para trás, e fiquei tonta de tantas estrelas que se vêem no campo, pois, o céu do campo é limpo.
Não há lógica, se se for pensar um pouco, na ilogicidade perfeitamente equilibrada da natureza. Da natureza humana também.
O que seria do mundo, do cosmos, se o homem não existisse.
Se eu pudesse escrever sempre assim como estou escrevendo agora eu estaria em plena tempestade de cérebro que significa brainstorm.
Quem terá inventado a cadeira?
Alguém com amor por si mesmo.
Inventou então um maior conforto para o seu corpo.
Depois os séculos se seguiram e nunca mais ninguém prestou realmente atenção a uma cadeira, pois usá-la é apenas automático.
É preciso ter coragem para fazer um brainstorm: nunca se sabe o que pode vir a nos assustar.
O monstro sagrado morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha.
Bem sei que terei de parar, não por causa de falta de palavras, mas porque essas coisas, e sobretudo as que eu só pensei e não escrevi, não se usam publicar em jornais.

Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994

25 janeiro, 2007

Solidão


Minha força está na solidão.
Não tenho medo
nem de chuvas tempestivas
nem das grandes ventanias soltas,
pois eu também sou o escuro da noite.
Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

24 janeiro, 2007

Silêncio


É tão vasto o silêncio da noite na montanha. É tão despovoado. Tenta-se em vão trabalhar para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarçá-lo. Ou inventar um programa, frágil ponto que mal nos liga ao subitamente improvável dia de amanhã. Silêncio tão grande que o desespero tem pudor. Os ouvidos se afiam, a cabeça inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor. Nenhum galo. Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio. Desse silêncio sem lembranças de palavras. Se és morte, como te alcançar.
É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel mas insone; e sem fantasmas. É terrível - sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o vento. Vento é ira, ira é a vida. Ou neve. Que é muda mas deixa rastro - tudo embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar do silêncio como se fala da neve. Não se pode dizer a ninguém como se diria da neve: sentiu o silêncio desta noite? Quem ouviu não diz.
A noite desce com suas pequenas alegrias de quem acende lâmpadas com o cansaço que tanto justifica o dia. As crianças de Berna adormecem, fecham-se as últimas portas. As ruas brilham nas pedras do chão e brilham já vazias. E afinal apagam-se as luzes as mais distantes.
Mas este primeiro silêncio ainda não é o silêncio. Que se espere, pois as folhas das árvores ainda se ajeitarão melhor, algum passo tardio talvez se ouça com esperança pelas escadas.
Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento, e da terra a lua alta. Então ele, o silêncio, aparece.
O coração bate ao reconhecê-lo.
Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que passaram e para sempre se perderam. Mas é inútil esquivar-se: há o silêncio. Mesmo o sofrimento pior, o da amizade perdida, é apenas fuga. Pois se no começo o silêncio parece aguardar uma resposta - como ardemos por ser chamados a responder - cedo se descobre que de ti ele nada exige, talvez apenas o teu silêncio. Quantas horas se perdem na escuridão supondo que o silêncio te julga - como esperamos em vão por ser julgados pelo Deus. Surgem as justificações, trágicas justificações forjadas, humildes desculpas até a indignidade. Tão suave é para os ter humano enfim mostrar sua indignidade e ser perdoado com a justificativa de que se é um ser humano humilhado de nascença.
Até que se descobre - nem a sua indignidade ele quer. Ele é o silêncio.
Pode-se tentar enganá-lo também. Deixa-se como por acaso o livro de cabeceira cair no chão. Mas, horror - o livro cai dentro do silêncio e se perde na muda e parada voragem deste. E se um pássaro enlouquecido cantasse? Esperança inútil. O canto apenas atravessaria como uma leve flauta o silêncio.
Então, se há coragem, não se luta mais. Entra-se nele, vai-se com ele, nós os únicos fantasmas de uma noite em Berna. Que se entre. Que não se espere o resto da escuridão diante dele, só ele próprio. Será como se estivéssimos num navio tão descomunalmente enorme que ignorássemos estar num navio. e este singrasse tão largamente que ignorássemos estar indo. Mais do que isso um homem não pode. Viver na orla da morte e das estrelas é vibração mais tensa do que as veias podem suportar. Não há sequer um filho de astro e de mulher como intermediário piedoso. O coração tem que se apresentar diante do nada sozinho e sozinho bater alto nas trevas. Só se sente nos ouvidos o próprio coração. Quando este se apresenta todo nu, nem é comunicação, é submissão. Pois nós não fomos feitos senão para o pequeno silêncio.
Se não há coragem, que não se entre. que se espere o resto da escuridão diante do silêncio, só os pés molhados pela espuma de algo que se espraia de dentro de nós. Que se espere. Um insolúvel pelo outro. Um ao lado do outro, duas coisas que não se vêem na escuridão. Que se espere. Não o fim do silêncio, mas o auxílio bendito de um terceiro elemento, a luz da aurora.
Depois nunca mais se esquece. Inútil até fugir para outra cidade. Pois quando menos se espera pode-se reconhecê-lo - de repente. Ao atravessar a rua no meio das buzinas dos carros. Entre uma gargalhada fantasmagórica e outra. Depois de uma palavra dita. Às vezes no próprio coração da palavra. Os ouvidos se assombram, o olhar se esgazeia - ei-lo. E dessa vez ele é fantasma.

Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994

23 janeiro, 2007

Os obedientes


Um casal viveu muitos anos junto.
Sua harmonia conjugal era aparentemente perfeita.
Mas não tinham emoções.
Cumpriam com perfeição a rotina, totalmente obedientes ao que se convencionou chamar de realidade de um casal, inclusive quanto à fidelidade.
Nem individualmente nem em comum faziam ou diziam algo de inconveniente.
Já ultrapassada a idade de 50 anos, ambos começaram a ter alguns sonhos.
Cada um pensava timidamente em seu interior sem falar:
ele imaginava que muitas aventuras amorosas significariam vida;
ela, que outro homem a salvaria.
Certo dia, ela estava comendo uma maçã e sentiu quebrar-se um dente da frente.
Olhou-se no espelho do banheiro,
“viu uma cara pálida, de meia-idade, com um dente quebrado, e os próprios olhos...”
Então, jogou-se pela janela.
O marido continuou existindo;
“seco inesperadamente o leito do rio,
andava perplexo e sem perigo sobre o fundo
com uma lepidez de quem vai cair de bruços mais adiante.”

Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
In “Felicidade clandestina”

22 janeiro, 2007

Olhe para todos a seu redor


Olhe para todos a seu redor e
veja o que temos feito de nós.
Não temos amado, acima de todas as coisas.
Não temos aceito o que não entendemos
porque não queremos passar por tolos.
Temos amontoado coisas, coisas e coisas,
mas não temos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que
já não esteja catalogada.
Temos construído catedrais,
e ficado do lado de fora,
pois as catedrais que nós mesmos construímos,
tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos,
pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos
diante do primeiro de nós que por amor diga:
tens medo.
Temos organizado associações e clubes
sorridentes onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar,
mas sem usar a palavra salvação
para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor para
não termos de reconhecer sua contextura de ódio,
de ciúme e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte
para tornar nossa vida possível.
Muitos de nós fazem arte
por não saber como é a outra coisa.
Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença,
sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada.
Temos disfarçado com o pequeno medo
o grande medo maior e por isso nunca falamos
o que realmente importa.
Falar no que realmente importa
é considerado uma gafe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez
de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingênuos para
não rirmos de nós mesmos e para que no
fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo"
e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz.
Temos sorrido em público do que não sorriríamos
quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia...
Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

21 janeiro, 2007

O amor e o grito


Um dia um mestre perguntou aos seus discípulos:
- Por que as pessoas gritam quando estão aborrecidas?
Os homens pensaram por alguns momentos.
- Porque perdemos a calma - disse um deles. - Por isso gritamos.
- Mas, por que gritar quando a outra pessoa está ao teu lado? Não é possível falar-lhe em voz baixa? Por que gritas a uma pessoa quando estás aborrecido?
Os homens deram algumas respostas, mas nenhuma delas satisfez o mestre. Finalmente ele explicou:
- Quando duas pessoas estão aborrecidas, seus corações se afastam muito. Para cobrir esta distância precisam gritar para poder escutar-se.
Quanto mais aborrecidas estejam, mais forte terão que gritar para se escutar um ao outro através desta grande distância.
Em seguida perguntou:
- O que sucede quando duas pessoas se enamoram?
- Elas não gritam, mas se falam suavemente.
- Por quê?
- Porque seus corações estão muito perto. A distância entre elas é pequena.
- Quando se enamoram, acontece mais alguma coisa?
- Notem que quase não falam, somente sussurram, e ficam cada vez mais perto do seu amor. Finalmente, não necessitam sequer sussurrar, somente se olham e isto é tudo. Assim é quando duas pessoas que se amam estão próximas.
Portanto, quando discutirem, não deixem que seus corações se afastem, não digam palavras que os distanciem mais.
Chegará um dia em que a distância será tanta que não mais encontrarão o caminho de volta.
Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

20 janeiro, 2007

Nasci dura


Nasci dura, heróica, solitária e em pé.
E encontrei meu contraponto na paisagem sem pitoresco e sem beleza.
A feiúra é o meu estandarte de guerra.
Eu amo o feio com um amor de igual para igual.
E desafio a morte.
Eu - eu sou a minha própria morte.
E ninguém vai mais longe.
O que há de bárbaro em mim procura o bárbaro e cruel fora de mim.
Vejo em claros e escuros os rostos das pessoas que vacilam às chamas da fogueira.
Sou uma árvore que arde com duro prazer.
Só uma doçura me possui:
a conivência com o mundo.
Eu amo a minha cruz, a que doloridamente carrego.
É o mínimo que posso fazer de minha vida:
aceitar comiseravelmente o sacrifício da noite.
Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

19 janeiro, 2007

Monet


Estou ouvindo música.
Debussy usa as espumas do mar morrendo na areia, refluindo e fluindo.
Bach é matemático.
Mozart é o divino impessoal.
Chopin conta a sua vida mais íntima.
Schoenberg, através de seu eu, atinge o clássico eu de todo o muno.
Beethoven é a emulsão humana em tempestade procurando o divino e só o alcançando na morte.
Quanto a mim, que não peço música, só chego ao limiar da palavra nova.
Sem coragem de expô-la.
Meu vocabulário é triste e às vezes wagneriano-polifónico-paranóico.
Escrevo muito simples e muito nu.
Por isso fere.
Sou uma paisagem cinzenta e azul.
Elevo-me na fonte seca e na luz fria.
Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

18 janeiro, 2007

Mentir, pensar


O pior de mentir é que cria falsa verdade.
(Não, não é tão óbvio como parece, não é truísmo;
sei que estou dizendo uma coisa
e que apenas não sei dizê-la do modo certo,
aliás, o que me irrita é que tudo tem de ser "do modo certo",
imposição muito limitadora.)
O que é mesmo que eu estava tentando pensar?
Talvez isso:
se a mentira fosse apenas a negação da verdade,
então este seria um dos modos (negativos) de dizer a verdade.
Mas a mentira pior é a mentira "criadora".
(Não há dúvida:
pensar me irrita,
pois antes de começar a pensar eu sabia muito bem o que eu sabia.)
Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

17 janeiro, 2007

Mas há a vida


Mas há a vida
que é para ser
intensamente vivida,
há o amor.
Que tem que ser vivido
até a ultima gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.

Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

16 janeiro, 2007

Mal-estar de um anjo


Ao sair do edifício, o inesperado me tomou. O que antes fora apenas chuva na vidraça, abafado de cortina e aconchego, era na rua a tempestade e a noite. Tudo isso se fizera enquanto eu descera pelo elevador? Dilúvio carioca, sem refúgio possível, Copacabana com água en­tran­do pelas lojas rasas e fechadas, águas grossas de lama até o meio da perna, o pé tateando para encontrar calçadas invisíveis. Até movimento de maré já tinha, onde se juntasse o bastante de água começava a atuar a secreta influência da Lua: já havia fluxo e refluxo de maré. E o pior era o temor ancestral gravado na carne: estou sem abrigo, o mundo me expulsou para o próprio mun­do, e eu que só caibo numa casa nunca mais terei casa na vida, esse vestido ensopado sou eu, os cabelos escorridos nunca secarão, e sei que não serei dos escolhidos para a Arca, pois já selecionaram o melhor casal de minha espécie.
Pelas esquinas os carros de motor paralisado, e nem sombra de táxi. E a alegria feroz de vários homens finalmente impossibilitados de voltar para casa. A alegria demoníaca dos homens livres ainda mais ameaçava quem só queria casa própria. Andei sem rumo ruas e ruas, mais me arrastava que andava, parar é que era o perigo. De minha desmedida desolação eu só conseguia que ela fosse disfarçada. Alguém, radiante sob uma marquise, disse: que coragem, hein, dona! Não era coragem, era exatamente o medo. Porque tudo estava paralisado, eu que tenho medo do instante em que tudo pare tinha que andar.
E eis que nas águas vejo um táxi. Avançava cuidadosamente, quase centímetro por centí­metro, tateando o chão com as rodas. Como é que eu me apoderaria daquele táxi? Aproxi­mei-me. Não podia me dar ao luxo de pedir, lembrei-me de todas as vezes em que, por ter tido a doçura de pedir, não me deram. Contendo o desespero, o que sempre me dá uma aparência de força, disse ao chofer: “o senhor vai me levar para casa! é de noite! tenho filhos pequenos que devem estar assustados com minha demora, é de noite, ouviu?!” Para minha grande surpresa, vai o homem e simplesmente diz que sim. Ainda sem entender, entrei. O carro mal se movia nas ondas lamacentas, mas movia-se - e chegaria. Eu só pensava: eu não valho tanto. Daí a pouco já estava pensando: e eu que não sabia que valia tanto. E daí a pouco era a dona-de-casa de meu táxi, já tomara posse de direito do que gratuitamente me fora dado, e energicamente tomava medidas úteis: torcia cabelos e roupas, tirava os sapatos amolecidos, enxugava o rosto que mais parecia ter chorado. A verdade, sem pudor, é que eu tinha chorado. Muito pouco, e misturando motivos, mas chorado. Depois de arrumar minha casa, encostei-me bem confortável no que era meu, e de minha Arca assisti ao mundo acabar-se.
Uma senhora aproximou-se então do carro. Devagar como este avançava, ela pôde acom­panhá-lo agarrada em aflição ao trinco da porta. E literalmente me implorava para comparti­lhar do táxi. Era tarde demais para mim, e seu itinerário me desviaria de meu caminho. Lembrei-me, porém, de meu desespero de havia cinco minutos, e resolvi que ela não teria o mesmo. Quando eu lhe disse que sim, seu tom de imploração imediatamente cessou, substituído por uma voz extremamente prática: “É, mas espere um pouco, vou até aquela transversal buscar na casa da costureira o embrulho do vestido que deixei lá para não molhar”. “Estará ela se apro­veitando de mim?”, indaguei-me na velha dúvida se devo ou não deixar que se aproveitem de mim. Terminei cedendo. Ela demorou à vontade. E voltou com um enorme embrulho pousado nas mãos estendidas, como se até seu próprio corpo pudesse macular o vestido. Instalou-se total­mente, o que me deixou tímida na minha própria casa.
E começou o meu calvário de anjo - pois a mulher, com sua voz autoritária, já tinha co­meçado a me chamar de anjo. Não poderia ser menos comovente o seu caso: aquela era a noite de uma première e, se não fosse eu, o vestido se estragaria na chuva ou ela se atrasaria e perderia a première. Eu já tivera as minhas premières, e nem as minhas me haviam comovido. “A senhora não sabe o milagre que me aconteceu”, contou-me com firmeza. “Comecei a rezar na rua, a rezar ara que Deus me mandasse um anjo que me salvasse, fiz promessa de não comer quase nada amanhã. E Deus me mandou a senhora.” Constrangida, remexi-me no banco. Eu era um anjo destinado a proteger premières? a ironia divina me encabulava. Mas a senhora, com toda a força de sua fé prática, e tratava-se de mulher forte, continuava impositivamente a reconhe­cer o anjo em mim, o que só pouquíssimas pessoas até hoje reconheceram, e sempre com a maior discrição. Tentei sem jeito a leveza de um sarcasmo: “Não me supervalorize, sou ape­nas um meio de transporte”. Enquanto que a ela nem sequer ocorreu compreender-me, eu a contragosto percebia que o argumento na verdade não me isentava: anjos também são meios de transporte. Intimidada, calei-me. Fico muito impressionada com quem grita comigo: a mulher não gritava, mas claramente mandava em mim. Impossibilitada de confrontá-la, refugiei-me num doce cinismo: aquela senhora, que tratava com tanto vigor do próprio êxtase, devia ser mulher habituada a comprar com dinheiro, e na certa terminaria por agradecer ao anjo com um cheque, também levando em conta que a chuva já devia ter lavado toda a minha distinção. Com um pouco mais de confortável cinismo, em silêncio, declarei-lhe que dinheiro seria um meio tão legítimo como qualquer outro de agradecer, já que a moeda dela era mesmo moeda. Ou então - diverti-me eu - bem poderia dar-me em agradecimento o vestido da première, pois o que ela realmente deveria agradecer não era ter um vestido seco, e sim ter sido atingida pela graça, isto é, por mim. Dentro de um cinismo cada vez melhor, pensei: “Cada um tem o anjo que merece, veja que anjo lhe coube: estou cobiçando por pura curiosidade um vestido que nem sequer vi. Agora quero ver como é que sua alma vai se arrumar com a idéia de um anjo interessado em roupas”. Parece-me que, no meu orgulho, eu não queria ter sido escolhida para servir de anjo à tolice ardente de uma senhora.
A verdade é que ser anjo estava começando a me pesar. Conheço bem esse processo do mundo: chamam-me de bondosa, e pelo menos durante algum tempo fico atrapalhada para ser ruim. Comecei também a compreender como os anjos se chateiam: eles servem a tudo. Isso nunca me ocorrera. A menos que eu fosse um anjo muito embaixo na escala dos anjos. Quem sabe, até, eu era só aprendiz de anjo. A alegria satisfeitona daquela senhora começava a me dei­xar sombria: ela fizera uso exorbitante de mim. Fizera de minha natureza indecisa uma profissão definida, transformara minha espontaneidade em dever, acorrentava-me, a mim, que era anjo, o que a essa altura eu já não podia mais negar, mas anjo livre. Quem sabe, porém, eu só fora man­dada ao mundo para aquele instante de utilidade. Era isso, pois, o que eu valia. No táxi, eu não era um anjo decaído: era um anjo que caía em si. Caí em mim e fechei a cara. Um pouco mais e teria dito àquela de quem eu era com tanta revolta o anjo da guarda: faça o obséquio de descer já e imediatamente deste táxi! Mas fiquei calada, agüentando o peso de minhas asas cada vez mais contritas pelo seu enorme embrulho. Ela, a minha protegida, continuava a falar bem de mim, ou melhor, de minha função. Emburrei. A senhora sentiu e calou-se um pouco desarvorada. Já na altura de Viveiros de Castro a hostilidade se declarara muda entre nós.
- Escute, disse-lhe eu de repente, pois minha espontaneidade é faca de dois gumes tam­bém para os outros, o táxi vai antes me deixar em casa e depois é que segue com a senhora.
- Mas, disse ela surpreendida e em começo de indignação, depois vou ter que dar uma volta enorme e vou me atrasar! é só um pequeno desvio para me deixar em casa!
- Pois é, respondi seca. Mas não posso entrar pelo desvio.
- Eu pago tudo! insultou-me ela com a mesma moeda com que teria se lembrado de me agradecer.
- Eu é que pago tudo, insultei-a.
Ao saltar do táxi, assim como quem não quer nada, tive o cuidado de esquecer no banco as minhas asas dobradas. Saltei com a profunda falta de educação que me tem salvo de abismos angelicais. Livre de asas, com a grande rabanada de uma cauda invisível e com a altivez que só tenho quando pára de chover, atravessei como uma rainha os largos umbrais do Edifício Vis­conde de Pelotas.

Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
In Para Não Esquecer.
São Paulo, Ática, 1984

15 janeiro, 2007

Eu sei mas não devia


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduiche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já e noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a poluição.
As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
As bactérias de água potavel.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto se acostumar, e se perde de si mesma.
Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

14 janeiro, 2007

Escrever


Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer.
O som de minha máquina é macio.
Que é que eu posso escrever.
Como recomeçar a anotar frases?
A palavra é o meu meio de comunicação.
Eu só poderia amá-la.
Eu jogo com elas como se lançam dados:
acaso e fatalidade.
A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som.
Cada palavra é uma idéia.
Cada palavra materializa o espirito.
Quanto mais palavras eu conheço,
mais sou capaz de pensar o meu sentimento.
Devemos modelar nossas palavras
até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos.
Sempre achei que o traço de um escultor
é identificável por um extrema simplicidade de linhas.
Todas as palavras que digo -
é por esconderem outras palavras.
Qual é mesmo a palavra secreta?
Não sei é porque a ouso?
Não sei porque não ouso dizê-la?
Sinto que existe uma palavra,
talvez unicamente uma,
que não pode e não deve ser pronunciada.
Parece-me que todo o resto não é proibido.
Mas acontece que eu quero é exactamente me unir a essa palavra proibida.
Ou será? Se eu encontrar essa palavra,
só a direi em boca fechada, para mim mesma,
senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade.
Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma fruta proibida.
As palavras é que me impedem de dizer a verdade.
Simplesmente não há palavras.
O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo.
Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também.
Sim, mas é a sorte às vezes.
Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranquilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas.
Cada vez mais eu escrevo com menos palavras.
Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever.
Eu tenho uma falta de assunto essencial.
Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora.
Simplesmente as palavras do homem.
Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

13 janeiro, 2007

Entender

Não entendo.
Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender.
Entender é sempre limitado.
Mas não entender pode não ter fronteiras.
Sinto que sou muito mais completa quando não entendo.
Não entender, do modo como falo, é um dom.
Não entender,
mas não como um simples de espírito.
O bom é ser inteligente e não entender.
É uma benção estranha,
como ter loucura sem ser doida.
É um desinteresse manso,
é uma doçura de burrice.
Só que de vez em quando vem a inquietação:
quero entender um pouco.
Não demais:
mas pelo menos entender que não entendo.
Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

12 janeiro, 2007

Encarnação involuntária

A narradora tem o hábito de, quando vê uma pessoa que nunca viu, observá-la e encarnar-se nela, para poder conhecê-la.

Certa vez, num avião encarnou-se numa missionária.
Durante toda a viagem e alguns dias em terra, assumiu o “ar de sofrimento-superado-pela-paz-de-se-ter-uma missão”.
A narradora levanta a hipótese de nunca ter sido ela mesma senão no momento de nascer, e o resto tinha sido encarnações.
Depois ela afirma que não, que ela é uma pessoa.
“E quando o fantasma de mim mesmo me toma – então é um encontro de alegria, uma tal festa, que a modo de dizer choramos uma no ombro da outra”.

Uma vez, também em viagem, ela encontrou uma prostituta perfumadíssima que fumava entrefechando o olhos e estes ao mesmo tempo olhavam um homem que já estava sendo hipnotizado.
Então, a narradora fez o mesmo.
“Mas o homem gordo que eu olhava para experimentar e ter a alma da prostituta, o gordo estava mergulhado no New York Times.
E meu perfume era discreto demais.
Falhou tudo”.


Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
In “Felicidade clandestina”

11 janeiro, 2007

É preciso também não perdoar

Uma entrevistada do programa da BBC, Inglaterra, na Hora das Mulheres, falou sobre suas experiências como prisioneira de guerra:
- Quando uma pessoa já experimentou muitos sofrimentos, sabe apreciar as fraquezas e as boas qualidades até mesmo dos próprios inimigos. Por que deve ser nosso inimigo completamente mau, ou a vítima completamente boa? Ambos são criaturas humanas, com o que é bom e o que é mau. E creio que se apelarmos para o lado bom das pessoas teremos êxito, na maioria dos casos.

Sei o que ela quis dizer, mas está errado.
Há uma hora em que se deve esquecer a própria compreensão humana e tomar um partido, mesmo errado, pela vítima, e um partido, mesmo errado, contra o inimigo.
E tornar-se primário a ponto de dividir as pessoas em boas e más.
A hora da sobrevivência é aquela em que a crueldade de quem é vítima é permitida, a crueldade e a revolta.

E não compreender os outros é que é certo.

Autor: Clarice Lispector (Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

10 janeiro, 2007

É para lá que eu vou


Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto - é para lá que eu vou.
À ponta do lápis o traço.
Onde expira um pensamento está uma idéia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou.
Na ponta dos pés o salto.
Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou.
Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade? eu vos espero. E para lá que eu vou.
Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra “tertúlia” e não sei aonde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que eu vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio.
Não sei sobre o que estou falando. Estou falando de nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome.
É para o meu pobre nome que vou.
E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta? a do amor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber.
À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento? que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.
Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.
Oh, cachorro, cadê tua alma? está à beira de teu corpo? Eu estou à beira de meu corpo. E feneço lentamente.
Que estou eu a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós.

Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
in “Onde estivestes de noite” - 7ª Ed.
Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994

09 janeiro, 2007

Deus

Mesmo para os descrentes há a pergunta duvidosa:
e depois da morte?
Mesmo para os descrentes há o instante de desespero:
que Deus me ajude.
Neste mesmo instante estou pedindo que Deus me ajude.
Estou precisando.
Precisando mais do que a força humana.
E estou precisando da minha própria força.
Sou forte mas também sou destrutiva.
Autodestrutiva.
E quem é autodestrutivo também destrói os outros.
Estou ferindo muita gente.
E Deus tem que vir a mim, já que eu não tenho ido a Ele.
Venha, Deus, venha.
Mesmo que eu não mereça, venha.
Ou talvez os que menos merecem precisem mais.
Só uma coisa a favor de mim eu posso dizer: nunca feri de propósito.
E também me dói quando percebo que feri.
Mas tantos defeitos tenho.
Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa.
Embora amor dentro de mim eu tenha.
Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas.
Se tanto amor dentro de mim recebi e continuo inquieta e infeliz,
é porque preciso que Deus venha.
Venha antes que seja tarde demais.

Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

08 janeiro, 2007

Das vantagens de ser bobo


O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir, tocar no mundo.
O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo, estou pensando”.
Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.
O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas.
O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver.
O bobo parece nunca ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.
Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer.
Resultado: não funciona.
Chamado um técnico, a opinião deste era que o aparelho estava tão estragado que o concerto seria caríssimo: mais vale comprar outro.
Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e, portanto estar tranqüilo.
Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.
Aviso: não confundir bobos com burros.
Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"
Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu.
Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos.
Os espertos ganham dos outros. Em compensação, os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás, não se importam que saibam que eles sabem.
Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!
Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.
É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca.
É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.
Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
In “A Descoberta do Mundo”

07 janeiro, 2007

Dá-me a tua mão

Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio
e nesse silêncio profundo se esconde
minha imensa vontade de gritar

Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

06 janeiro, 2007

Como tratar o que se tem


Existe um ser que mora em mim como se fosse casa sua, e é.
Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem - pois nunca morou em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela - apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo:
come às vezes na minha mão.
Seu focinho é úmido e fresco.
Eu beijo o seu focinho.
Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito.
A menos que ele escolha outra casa que não tenha medo do que é ao mesmo tempo selvagem e suave.
Aviso que ele não tem nome:
basta chamá-lo e se acerta com seu nome.
Ou não se acerta, mas uma vez chamado com doçura e autoridade ele vai.
Se ele fareja e sente que um corpo é livre, ele trota sem ruídos e vai.
Aviso também que não se deve temer o seu relinchar:
a gente se engana e pensa que é a gente mesmo que está relinchando de prazer ou de cólera.
Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

05 janeiro, 2007

Como se chama


Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto - como se chama o que sinto? Uma pessoa de quem não se gosta mais e que não gosta mais da gente - como se chama essa mágoa e esse rancor? Estar ocupada, e de repente parar por ter sido tomada por uma desocupação beata, milagrosa, sorridente e idiota - como se chama o que se sentiu? O único modo de chamar é perguntar: como se chama? Até hoje só consegui nomear com a própria pergunta. Qual é o nome? e é este o nome.

Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
in "Para não esquecer" - 5ª ed.
Siciliano - São Paulo, 1992

04 janeiro, 2007

Come, meu filho


O mundo parece chato mas eu sei que não é. Sabe por que parece chato? Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo, nunca está de lado. Eu sei que o mundo é redondo porque disseram, mas só ia parecer redondo se a gente olhasse e às vezes o céu estivesse lá embaixo. Eu sei que é redondo, mas para mim é chato, mas Ronaldo só sabe que o mundo é redondo, para ele não parece chato.
- ...
- Porque eu estive em muitos países e vi que nos Estados Unidos o céu também é em cima, por isso o mundo parecia todo reto para mim. Mas Ronaldo nunca saiu do Brasil e pode pensar que só aqui é que o céu é lá em cima, que nos outros lugares não é chato, que só é chato no Brasil, que nos outros lugares que ele não viu vai arredondando. Quando dizem para ele, é só acreditar, pra ele nada precisa parecer. Você prefere prato fundo ou prato chato, mamãe?
- Chat... raso, quer dizer.
- Eu também. No fundo, parece que cabe mais, mas é só para o fundo, no chato cabe para os lados e a gente vê logo tudo o que tem. Pepino não parece inreal?
- Irreal.
- Por que você acha?
- Se diz assim.
- Não, por que é que você também achou que pepino parece inreal? Eu também. A gente olha e vê um pouco do outro lado, é cheio de desenho bem igual, é frio na boca, faz barulho de um pouco de vidro quando se mastiga. Você não acha que pepino parece inventado?
- Parece.
- Onde foi inventado feijão com arroz?
- Aqui.
- Ou no árabe, igual que Pedrinho disse de outra coisa?
- Aqui.
- Na Sorveteria Gatão o sorvete é bom porque tem gosto igual da cor. Para você carne tem gosto de carne?
- Às vezes.
- Duvido! Só quero ver: da carne pendurada no açougue?!
- Não.
- E nem da carne que a gente fala. Não tem gosto de quando você diz que carne tem vitamina.
- Não fala tanto, come.
- Mas você está olhando desse jeito para mim, mas não é para eu comer, é porque você está gostando muito de mim, adivinhei ou errei?
- Adivinhou. Come, Paulinho.
- Você só pensa nisso. Eu falei muito para você não pensar só em comida, mas você vai e não esquece.

Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
in “Felicidade Clandestina”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998

03 janeiro, 2007

Cem anos de perdão


Quem nunca roubou não vai me entender.
E quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender.
Eu, em pequena, roubava rosas.
Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins.
Eu e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertenciam os palacetes.
“Aquele branco é meu.”
“Não, eu já disse que os brancos são meus.”
Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas grades, olhando.
Começou assim. Numa dessas brincadeiras de “essa casa é minha”, paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo.
No fundo via-se o imenso pomar.
E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores.
Bem, mas isolada no seu canteiro estava uma rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo.
Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era.
E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como eu queria. E não havia jeito de obtê-la.
Se o jardineiro estivesse por ali, pediria a rosa, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques.
Não havia jardineiro à vista, ninguém.
E as janelas, por causa do sol, estavam de venezianas fechadas.
Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia.
No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha.
Eu queria poder pegar nela.
Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume.
Então não pude mais.
O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão.
Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes raros na rua.
Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido.
Entreabri somente o bastante para que meu esguio corpo de menina pudesse passar.
E, pé ante pé, mas veloz, andava pelos pedregulhos que rodeavam os canteiros.
Até chegar à rosa foi um século de coração batendo.
Eis-me afinal diante dela.
Para um instante, perigosamente, porque de perto ela é ainda mais linda.
Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos.
E, de repente - ei-la toda na minha mão.
A corrida de volta ao portão tinha também de ser sem barulho.
Pelo portão que deixara entreaberto, passei segurando a rosa.
E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe da casa.
O que é que fazia eu com a rosa?
Fazia isso: ela era minha.
Levei-a para casa, coloquei-a num copo d'água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá.
No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.
Foi tão bom.
Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas.
O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão.
Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.
Também roubava pitangas.
Havia uma igreja presbiteriana perto de casa, rodeada por uma sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da igreja.
Nunca cheguei a vê-la, além de uma ponta de telhado.
A sebe era de pitangueira.
Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma.
Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão por entre as grades, mergulhava-a dentro da sebe e começava a apalpar até meus dedos sentirem o úmido da frutinha.
Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensanguentados.
Colhia várias que ia comendo ali mesmo, umas até verdes demais, que eu jogava fora.
Nunca ninguém soube.
Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão.
As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.

Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
in “Felicidade Clandestina”
Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998

02 janeiro, 2007

As três experiências


Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou a minha vida.
Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos.
“O amar os outros” é tão vasto que inclui até o perdão para mim mesma com o que sobra.
As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto.
Tenho que me apressar, o tempo urge.
Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida .
Amar os outros é a única salvação individual que conheço:
ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.
E nasci para escrever.
A palavra é meu domínio sobre o mundo.
Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente.
Uma das vocações era escrever.
E não sei por que, foi esta que eu segui.
Talvez porque para outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós.
É que não sei estudar.
E, para escrever, o único estudo é mesmo escrever.
Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder.
E no entanto cada vez que eu vou escrever, é como se fosse a primeira vez.
Cada livro meu é uma estréia penosa e feliz.
Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever.
Quanto aos meus filhos, o nascimento deles não foi casual.
Eu quis ser mãe.
Meus dois filhos foram gerados voluntariamente.
Os dois meninos estão aqui, ao meu lado.
Eu me orgulho deles, eu me renovo neles, eu acompanho seus sofrimentos e angústias, eu lhes dou o que é possível dar.
Se eu não fosse mãe, seria sozinha no mundo.
Mas tenho uma descendência, e para eles no futuro eu preparo meu nome dia a dia.
Sei que um dia abrirão as asas para o vôo necessário, e eu ficarei sozinha:
É fatal, porque a gente não cria os filhos para a gente, nós os criamos para eles mesmos.
Quando eu ficar sozinha, estarei seguindo o destino de todas as mulheres.
Sempre me restará amar.
Escrever é alguma coisa extremamente forte mas que pode me trair e me abandonar:
posso um dia sentir que já escrevi o que é meu lote neste mundo e que eu devo aprender também a parar.
Em escrever eu não tenho nenhuma garantia.
Ao passo que amar eu posso até a hora de morrer.
Amar não acaba.
É como se o mundo estivesse a minha espera.
E eu vou ao encontro do que me espera.
Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

01 janeiro, 2007

O caminho pra encontrar a paz interior


Queridos amigos, essa é pra gente !!
Eu não gosto de mensagens melosas, mas... como isto deu certo, julguei ser útil postar.

Eu li um artigo em uma revista que dizia:

"O caminho para encontrar a paz interior é terminar todas as coisas que você começou."

Então, neste último sábado, olhei ao meu redor para ver todas as coisas que eu tinha começado e não havia acabado.
Em seguida, eu terminei com uma garrafa de vodka, duas de vinho tinto, uma de Black Label e o resto de uma caixa de cervejas.
Você não tem idéia de como eu fiquei em paz...

QUE A PAZ ESTEJA COM VOCÊ.