23 janeiro, 2007

Os obedientes


Um casal viveu muitos anos junto.
Sua harmonia conjugal era aparentemente perfeita.
Mas não tinham emoções.
Cumpriam com perfeição a rotina, totalmente obedientes ao que se convencionou chamar de realidade de um casal, inclusive quanto à fidelidade.
Nem individualmente nem em comum faziam ou diziam algo de inconveniente.
Já ultrapassada a idade de 50 anos, ambos começaram a ter alguns sonhos.
Cada um pensava timidamente em seu interior sem falar:
ele imaginava que muitas aventuras amorosas significariam vida;
ela, que outro homem a salvaria.
Certo dia, ela estava comendo uma maçã e sentiu quebrar-se um dente da frente.
Olhou-se no espelho do banheiro,
“viu uma cara pálida, de meia-idade, com um dente quebrado, e os próprios olhos...”
Então, jogou-se pela janela.
O marido continuou existindo;
“seco inesperadamente o leito do rio,
andava perplexo e sem perigo sobre o fundo
com uma lepidez de quem vai cair de bruços mais adiante.”

Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)
In “Felicidade clandestina”

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