22 setembro, 2007

Rifa-se um coração


Um coração idealista.
Um coração como poucos,
Um coração a moda antiga.
Um coração moleque
que insiste em pregar peças em seu usuário.
Rifa-se um coração
que na verdade está um pouco usado,
meio calejado,
muito machucado,
e que teima em cultivar sonhos
e alimentar ilusões.
Um pouco inconseqüente
e que nunca desiste de acreditar nas pessoas.
Um leviano e precipitado coração
que acha que Tim Maia estava certo
quando escreveu e tão bem cantou...
“...NÃO QUERO DINHEIRO,
QUERO AMOR SINCERO,
É ISSO QUE EU ESPERO...”
Um idealista,
um verdadeiro sonhador...
Rifa-se um coração
que nunca aprende,
que não endurece
e mantém sempre viva
a esperança de ser feliz,
sendo simples e natural.
Um coração insensato,
que comanda o racional
sendo louco o suficiente para se apaixonar.
Um furioso suicida
que vive procurando relações e emoções verdadeiras.
Rifa-se um coração
que insiste em cometer sempre os mesmos erros.
Esse coração que erra que briga, se expõe
Perde o juízo por completo
em nome de causas e paixões.
Sai do sério e as vezes revê suas posições
arrependido de palavras e gestos.
Este mesmo coração
tantas vezes incompreendido.
Tantas vezes provocado.
Tantas vezes impulsivo.
Rifa-se este desequilibrado emocional
que abre sorrisos tão largos
que quase dá para engolir as orelhas,
mas que também arranca lagrimas
e faz murchar meu rosto.
Um coração para ser alugado
ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes.
Um órgão abestado,
apenas indicado para quem quer viver intensamente,
contra indicado para os que apenas pretendem
passar pela vida matando o tempo,
defendendo-se das emoções.
Rifa-se um coração tão inocente
que se mostra sem armaduras
e deixa louco seu usuário.
Um coração que quando parar de bater
ouvirá o seu usuário dizer a São Pedro:
- “O Senhor pode conferir, eu fiz tudo certo,
só errei quando coloquei sentimento.
Só fiz bobagens e me dei mal quando
ouvi este louco coração de criança
que insiste em não endurecer e,
se recusa a envelhecer.”
Rifa-se um coração,
ou mesmo troca-se por outro
que tenha um pouco mais de juízo.
Um órgão mais fiel ao seu usuário.
Um amigo do peito que não maltrate
tanto o ser que o abriga tão carinhosamente.
Um coração que não seja tão inconseqüente.
Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,
mas que incomoda um bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras
que ainda não foi adotado,
provavelmente, por ainda se recusar
a cultivar ares selvagens ou racionais,
por não querer perder seu estilo
e sua verdadeira identidade.
Oferece-se um coração vadio,
sem raça,
sem pedigree.
Um simples coração humano.
Um impulsivo membro
de comportamento até meio ultrapassado.
Um modelo cheio de defeitos,
que mesmo estando no mercado,
faz questão de não se modernizar,
mas vez por outra,
constrange o corpo que o domina.
Um velho coração que convence seu usuário
a publicar seus segredos
e a ter a petulância de se aventurar como poeta.
Autor: Clarice Lispector (Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

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