31 dezembro, 2006

A vez de missionária


Quando o fantasma de pessoa viva me toma.
Sei que por vários dias serei essa mulher do missionário.
A magreza e a delicadeza dela já me tomaram.
É com algum deslumbramento, e prévio cansaço, que sucumbo ao que vou experimentar viver.
E com alguma apreensão, do ponto de vista prático:
ando agora ocupado demais com os meus deveres para poder arcar com o peso dessa vida nova que não conheço, mas cuja tensão evangelical já começo a sentir.
Percebo que no avião mesmo já comecei a andar com esse passo de santa leiga.
Quando saltar em terra, provavelmente já terei esse ar de sofrimento físico e de esperança moral.
No entanto quando entrei no avião estava tão forte.
Estava, não, estou.
É que toda a minha força está sendo usada para eu conseguir ser fraca.
Sou uma missionária ao vento.
Entendo, entendo, entendo.
Não entendo é nada: só que "não entendo" com o mesmo fanatismo depurado dessa mulher pálida.
Já sei que só daí a uns dias conseguirei recomeçar a minha própria vida, que nunca foi própria, senão quando o meu fantasma me toma.
Autor: Clarice Lispector(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

Nenhum comentário: